Godofredo Nascimento, um importador na Índia britânica ao final da "Grande Guerra"
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Memórias do Zebu » Importações de Zebu para o Brasil » Terceira Fase (1898 - 1921)
Publicado em 19/11/2015 às 13:48:33
- atualizado em 28/11/2016 às 18:16:51
O início do século XX explanava o auge das oligarquias representadas pelas elites agrárias. A importância econômica e social do século XVIII, então considerado o "Século Sertanejo" por alguns historiadores, ajudou a definir o quadro político que iria delinear o espírito da República Velha (1889-1930). No plano federal, a situação privilegiava a hegemonia de São Paulo e Minas Gerais. No âmbito paulista, a supremacia econômica decorria do café. Em Minas, a vantagem advinha da pecuária e do fato de tratar-se do mais populoso membro da federação. Nos anos que marcaram a transição do Império para a República, enquanto a maioria dos fazendeiros paulistas investiam os recursos extras da lavoura de exportação na compra de máquinas, pecuaristas mineiros tentavam buscavam no exterior uma maneira de aumentar o lucro.
As importações do Zebu, iniciadas nessa época, permaneceram. Seguindo o exemplo de Teófilo de Godoy, Ângelo Costa e Armel de Miranda, outros pecuaristas uberabenses retornaram à Índia a partir de 1918. A relutância de Virmondes e Otaviano para permanecer naquele país aumentava a esperança de que algumas hostilidades diplomáticas e culturais poderiam chegar ao fim em pouco tempo. Enquanto no Brasil implantavam-se as primeiras indústrias, a maquinaria fabril europeia já contava com pouco mais de cem anos de desenvolvimento técnico. Desse modo, assim como a tecnologia teve que ser importada, a pecuária bovina entendeu que o melhor empreendimento estava na aquisição do Zebu indiano. O momento privilegiava as importações.
A valorização do gado causada pela inauguração do grande frigorífico de Barretos permitiu ao Brasil Central investir na industrialização da carne. Assim como muitos fazendeiros paulistas direcionaram a atenção para a importação de tecnologia visando o aprimoramento da cafeicultura, parte dos pecuaristas mineiros buscou investir no melhoramento dos rebanhos. Ainda em processo de gestação, a zebuinocultura precisava dar continuidade às importações para alcançar esse fim. E isso, segundo os criadores, só poderia ser feito mediante o emprego de reprodutores "puro sangue" para "refrescar" o sangue dos rebanhos nacionais.
Leopoldino de Oliveira, Àlvaro Rocha, Luiz de Oliveira Valle, Ranulfo B. Nascimento, Josias de Almeida, Mizael Cruvinel Borges, Ismael Machado e Luiz de Oliveira Ferreira. Fonte MZ, 1918.
Ao perceberem o bom momento para os negócios, alguns criadores trataram de enviar emissários ou mesmo ir pessoalmente para a Índia. Em 1916, Celso Rosa e Adelino de Paula Leite regressaram da Ásia com cerca duas centenas de reprodutores em que predominavam o Guzerá e o Nelore. Pouco depois, Joaquim Borges e alguns criadores do Triângulo Mineiro embarcaram para Bombaim seu representante, o agrimensor Militino Pinto de Carvalho. Este, julgando ser a tarefa fácil, acabou encontrando-se com Virmondes Borges, que o auxiliou nas compras e no embarque do gado. O vapor japonês Kaifuro Maru trouxe o terceiro lote das importações realizadas nessa parceria. Ao singrar o Pacífico e aportar no Sul da África, o navio aportou em Santos trazendo exemplares em boas condições.
Nem mesmo a Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918) foi capaz de conter as importações que se seguiram nesse período. O antigo Raj Britânico, como era chamada a área que permanecia sob domínio dos ingleses durante o Imperialismo, passava por convulsões internas extremas, o que dificultava as negociações. A contribuição dos indianos para a vitória dos ingleses na Grande Guerra estimulou-os à exigência por maior voz no governo. O Partido do Congresso Nacional Indiano e a Liga Muçulmana alvitraram uma reforma constitucional que incluía o conceito de eleitorados separados e a exigência de autogoverno. Em 1919, o governo britânico ampliou a autoridade dos conselhos legislativos central e provinciais. Os laços imperiais enfraqueciam, mas a violência das imposições sobrevivia em meio à resistência dos colonizadores. O governador-geral continuou a ser o dirigente oficial perante Londres.
Em meio à crise, o ano de 1918 tornou-se definitivo para o fim da guerra e auspicioso para os rumos que o Neocolonialismo tomava. A Índia não estava livre, mas dava os primeiros passos que a conduziriam à independência. As reformas de 1919 não satisfizeram as exigências políticas indianas. Os britânicos reprimiram a oposição e reinstituíram as restrições à imprensa e ao movimento. Uma aparente violação das regras sobre ajuntamento de pessoas levou ao massacre de Jalianwala Bagh em Amritsar, em abril de 1919. Aquela tragédia galvanizou dirigentes políticos como Jawaharlal Nehru e Mohandas Mahatma Gandhi e seus seguidores a pressionar por mudanças. Como é possível perceber, a situação não era propícia, mas os importadores do Zebu não se intimidavam em meio às negociações.
Ilustração representando o encontro do Governador-geral da Índia, Lord Canning, com autoridades indianas durante o Raj Britânico. Início do século XX. Fonte: wikipedia, 2014.
Em 1918 os criadores Cacildo Arantes e Edmundo Arantes enviaram Josias Ferreira de Morais e Antônio Costa para comprar o gado indiano, onde trouxeram um pequeno lote de Guzerá. O goiano Pedro Santérre Guimarães, associado ao mineiro radicado no Rio de Janeiro, Manoel Alves Caldeira Jr., também realizaram diversas importações. Alguns animais da raça Nelore auxiliaram a comercialização do Zebu entre mineiros, paulistanos e cariocas. Os diversos lotes importados em 1919 chegaram a totalizar 944 cabeças, entre gado adulto e novo, conforme registros encontrados na alfândega de Santos e Rio de Janeiro, publicados no Anuário Estatístico do Ministério da Fazenda. A contribuição para a melhora do rebanho no Brasil foi, de certo modo, definidora em alguns aspectos.
(...) Tinham Caldeira e Santérre, como seu melhor freguês, o Cel. João de Abreu Junior, o qual, por essa razão, gozava do privilégio de proceder à escolha de seus futuros reprodutores, com o gado ainda a bordo, enquanto se providenciava o desembarque. No último lote trazido da Àsia, vieram já reservados para o antigo criador de Cantagalo, a vaca Benares e o garrote Calicut, escolhidos na Índia em virtude de seus antecedentes leiteiros. Ambos eram portadores de orelhas com apêndices, motivo pelo qual se diziam serem possuidores de quatro orelhas. A reprodutora Benares confirmou plenamente a recomendação do importador, pois chegou a produzir 17 litros de leite, diários, em regime de duas ordenhas. Muitas de suas filhas, todas portadoras daquele caráter, herdaram também a aptidão lactífera. Do referido casal descendem, segundo informação dos continuadores da obra de João de Abreu, todos os animais quatro orelhas encontrados nos rebanhos Guzerá, que tem sua origem no plantel de Cantagalo.
(SANTIAGO, 1972, p 118)
Em 1920, Gabriel Bernardes foi enviado por Gabriel Teixeira Junqueira, residente em Uberaba e possuidor de fazenda em Conquista, e Anésio Amaral, antigo criador em Serrana, no Município de Cravinhos, em São Paulo. Conseguiram trazer um rebanho em que destacavam o Gir. Essas e outras importações, inclusive aquela realizada por Anésio Amaral, conhecido pelo codinome "Alambique", deram origem a uma importante linhagem de gado Gir. Nesse mesmo ano, foram muitos os criadores a empreender a cruzada zebuína na Índia, tais como Ranulfo Borges do Nascimento, Ismael Machado, Luiz de Oliveira Vale, Godofredo Nascimento, Armando Veloso, Leopoldino de Oliveira, Adroaldo Cunha Campos, Celso Rosa, Isídio Pereira, Luís de Oliveira Ferreira, Luitprant Prata e Álvaro Rocha. Como consequência dessas atividades, foi verificado um recorde nas importações de zebuínos nesse mesmo ano.
Godofredo Nascimento, Pedro Santerre, Armando Veloso, Luitprant Prata, Luis O. Vale e Manoel O. Prata. Em baixo Manoel A. Caldeira Jr e Adroaldo Cunha Campos. Atrás: indianos. MZ, 1920.
Estábulos foram improvisados no convés dos navios. Alguns animais de maior valor eram colocados individualmente em boxes, onde peões uberabenses e indianos revezavam-se na alimentação e cuidados do gado durante as viagens. Era durante as trajetórias que os empreendedores discutiam a possibilidade de lucro e despesa. Mas, como era de se esperar, a desilusão acabou minando o sucesso das importações nesse período. Dois fatos determinaram um dos piores momentos da trajetória zebuína - o excesso de animais trazidos (cerca de 3.000 cabeças em 3 anos) e o surgimento da peste bovina em fevereiro de 1921 nos arredores da capital paulista. O mercado acabou saturado pela dificuldade nas vendas e a morte rápida daqueles animais que eram atingidos pela epidemia. A moléstia foi identificada pelos sanitaristas com o auxílio da Fundação Rockefeller.
(..) O Gasconier deixou o lote zebuíno no porto de Santos e, em fevereiro de 1921, surgiram nos arredores da capital paulista, principalmente em Osasco e Cotia, alguns doentes, cuja morte sobrevinha rapidamente. Era a temida peste bovina. Medidas enérgicas foram tomadas pelas autoridades paulistas e se conseguiu circunscrever e debelar a epidemia, à custa de 855 cabeças que sucumbiram à moléstia e mais 2.500 animais suspeitos ou já doentes, sacrificados à bala pelos milicianos da Força Pública, à medida que os veterinários oficiais procediam aos exames. A ação pronta e inflexível de nossos administradores livrou o país de um mal cujas consequências eram imprevisíveis.
(SANTIAGO, 1972, p 121)
Peste bovina no Peru, início do século XX. A doença espalhou-se rapidamente pela América. Fonte: Embrapa, 2014.
Mediante o aparecimento da peste bovina, o Governo Federal proibiu as importações e tornou obrigatório o período de quarentena para as levas que estavam a caminho nesse período. Por essa e outras razões, o ciclo das grandes importações de gado da Ásia foi encerrado. Depois de anos sucessivos de luta, a peste bovina tornou-se a maior preocupação dos sanitaristas. Anos se passaram até que a doença começou a dar os primeiros sinais de desaparecimento. Durante a década de 1960, novas importações foram realizadas mediante outra autorização do governo, conseguida a muito custo através de barganhas entre criadores, autoridades governamentais e a Índia. Diante desse impasse, segundo informe da Sociedade Brasileira de Medicina Veterinária, a erradicação da doença é, atualmente, uma das maiores contribuições do Brasil para o desenvolvimento da pecuária mundial.
(...) A Peste Bovina foi o primeiro grande desafio dos Serviços Veterinários brasileiros, quando introduzida em 1921, devido à importação de zebuínos através do Porto de Santos e transportada pelas estradas de ferro São Paulo Railway e Paulista. Esse procedimento infectou os vagões gaiolas, que por sua vez, mal desinfetados contaminou bovinos conduzidos ao Frigorífico de Osasco. O Dr. Moraes Barros nos conta que os animais de sangue zebu, pouco mais resistentes e logo abatidos, contaminaram os bois carreteiros do estabelecimento, mais susceptíveis por serem caracus ou terem menos sangue zebu. Desde os primórdios da humanidade, é considerada uma das doenças dos animais mais temida, pela alta mortalidade do gado, os prejuízos econômicos e sociais, a segurança alimentar e pela grande onda de fome causada aos diversos países Europeus.
A Peste Bovina, descrita tecnicamente pela pelo Dr. Lancisi, consultor científico do Papa Clemente XI, em 1711, está estreitamente ligada à história da Medicina Veterinária Universal. Motivou a criação da primeira Escola de Medicina Veterinária no Mundo, em Lyon, França em 1761, a Associação Mundial de Veterinária e do 1º. Congresso Mundial de Veterinária, em Hamburgo, Alemanha em 1863 e da própria OIE - Organização Mundial de Veterinária em 25 de janeiro de 1924. O Brasil deu um grande exemplo ao Mundo com a erradicação dessa doença. Graças ao trabalho diligente, coordenado por Moacyr Alves de Souza e Taylor de Mello, ambos foram dirigentes da SBMV, a Peste Bovina foi erradicada no Brasil em um ano de intenso labor. Enquanto o mundo levou em mais de três séculos de campanha para erradicar a Peste Bovina, o Brasil assim o fez em somente um ano de campanha sanitária, em 1922, agora completando 90 do Brasil livre dessa epizootia. A última ocorrência da Peste Bovina no Mundo foi no Quênia no ano de 2001 em um búfalo.
(A Hora Veterinária - Ano 31, nº 186, março/abril/2012).
Tentar entender como a pecuária bovina sobreviveu a tudo isso é, no mínimo, instigante. Mas convém considerar que alguns acontecimentos internos no Brasil favoreceram o desenvolvimento dessa atividade. O declínio da economia paulista refletia-se também em Minas Gerais. Ao findar a guerra, a Europa atravessou momentos de reconstrução e o café ensaiava passos cambaleantes em meio aos destroços do armistício. Mesmo entre a elite intelectual da República Velha havia aqueles que consideravam a indústria uma atividade econômica "prejudicial" à vida social. Acreditavam que o país tinha por destino evidente a agricultura e que toda a ação que tendia a desviar-se desse propósito era um crime contra a natureza e os interesses nacionais. Mesmo com a crise, a pecuária desenvolvia-se no sertão mineiro e São Paulo despontava como principal centro industrial do país, relegando ao Rio de Janeiro um modesto segundo lugar. Enquanto isso, o zebu, entre tantas outras atividades, era uma das possibilidades que aguçavam os paladares dos investidores sertanejos - em especial, aqueles que criavam gado na região do Triângulo Mineiro.
Autora: Mimi Barros é professora, educadora, historiadora do Museu do Zebu/ABCZ e colaboradora do CRPBZ.
CENTRO DE REFERÊNCIA DA PECUÁRIA BRASILEIRA - ZEBU