O Boi Zebu e as Formigas (Patativa do Assaré): poema matuto reproduz modo sertanejo na literatura
Voltar
Você está em:
Memórias do Zebu » Museu do Zebu » Histórias & Estórias
Publicado em 09/08/2016 às 14:02:03

Muita gente ainda confunde poesia matuta com Literatura de Cordel. Em 2009, ano do Centenário de nascimento do poeta Patativa do Assaré, considerado o maior expoente do gênero, os admiradores do poeta precisam fazer essa distinção. O CRPBZ destaca um de seus trabalhos que tem como tema o Zebu e o imaginário infanto-juvenil. Patativa do Assaré era o nome artístico (pseudônimo) de Antônio Gonçalves da Silva. Nasceu em 5 de março de 1909, na cidade de Assaré (estado do Ceará). Foi um dos mais importantes representantes da cultura popular nordestina. A naturalidade de seus dons fazia brotar no meio popular uma literatura livre, leve e peculiar ao entendimento singelo do povo.
Com a morte do pai, quando tinha apenas oito anos de idade, passou a ajudar a família no cultivo das terras. Aos doze anos frequentava a escola local, na qual foi alfabetizado em apenas alguns meses. A partir dessa época, começou a fazer repentes e a se apresentar em festas e ocasiões importantes. O poeta dizia entender bem das letras ao ouví-las ou lê-las apenas uma única vez.
Por volta dos vinte anos recebeu o pseudônimo de Patativa, por ser sua poesia comparável à beleza do canto dessa ave. A destreza com que oscilava o talento entre o erudito (genuíno) e o popular, o simples e o rústico, o brasileiro e o único, fez com que ganhasse respeito mesmo entre os críticos de literatura estrangeira.
Vida e obra
Dedicou sua vida a produção de cultura popular (voltada para o povo marginalizado e oprimido do sertão nordestino). Com uma linguagem simples, porém poética, destacou-se como compositor, improvisador e poeta. Produziu também literatura de cordel, sem nunca se considerar um cordelista.
Sua vida na infância foi marcada por momentos difíceis. Nasceu numa família de agricultores pobres e perdeu a visão de um olho. O pai morrendo de forma assim tão inesperada para um menino que tinha no genitor o seu maior exemplo e ídolo da vida sofrida, logo começou a trabalhar na roça para ajudar no sustento da família.
Ilustração de crianças sobre o poema "O Boi Zebu e as Formigas". Fonte: Brasil Escola, 2016.
Foi estudar numa escola local com doze anos de idade, porém ficou poucos meses nos bancos escolares. Nesta época, começou a escrever seus próprios versos e pequenos textos. Ganhou da mãe uma pequena viola aos dezesseis anos de idade. Muito feliz, passou a escrever e cantar repentes e se apresentar em pequenas festas da cidade.
No ano de 1956, escreveu seu primeiro livro de poesias "Inspiração Nordestina". Com muita criatividade, retratou aspectos culturais importantes do homem simples do Nordeste. Após este livro, escreveu outros que também fizeram muito sucesso. Ganhou vários prêmios e títulos por suas obras. Era nítida a facilidade em que compreendia as letras, fazendo delas o que bem entendia.
Obteve popularidade a nível nacional, possuindo diversas premiações, títulos e homenagens (tendo sido nomeado por cinco vezes Doutor Honoris Causa). No entanto, afirmava nunca ter buscado a fama, bem como nunca ter tido a intenção de fazer profissão de seus versos. Patativa nunca deixou de ser agricultor e de morar na mesma região onde se criou (Cariri) no interior do Ceará.
Seu trabalho se distingue pela marcante característica da oralidade. Seus poemas eram feitos e guardados na memória, para depois serem recitados. Daí o impressionante poder de memória de Patativa, capaz de recitar qualquer um de seus poemas, mesmo após os noventa anos de idade.
A transcrição de sua obra para os meios gráficos perde boa parte da significação expressa por meios não-verbais (voz, entonação, pausas, ritmo, pigarro e a linguagem corporal através de expressões faciais, gestos) que realçam características expressas somente no ato performático (como ironia, veemência, hesitação, etc.).
A complexidade da obra de Patativa é evidente também pela sua capacidade de criar versos tanto nos moldes camonianos (inclusive sonetos na forma clássica), como poesia de rima e métrica populares (por exemplo, a décima e a sextilha nordestina). Ele próprio diferenciava seus versos feitos em linguagem culta daqueles em linguagem do dia a dia (denominada por ele de poesia "matuta").
O artista faleceu no dia 8 de julho de 2002, em sua cidade natal. O grosso de sua produção, contudo, são poemas matutos, onde a linguagem procura reproduzir o modo de falar dos sertanejos de outrora, como se pode ver nesta obra a seguir:
O boi zebu e as formigas
Um boi zebu certa vez
Moiadinho de suó,
Querem saber o que ele fez
Temendo o calor do só
Entendeu de demorá
E uns minuto cuchilá
Na sombra de um juazêro
Que havia dentro da mata
E firmou as quatro pata
Em riba de um formiguêro.
Já se sabe que a formiga
Cumpre a sua obrigação,
Uma com outra não briga
Veve em perfeita união
Paciente trabaiando
Suas foia carregando
Um grande inzempro revela
Naquele seu vai e vem
E não mexe com mais ninguém
Se ninguém mexe com ela.
Por isso com a chegada
Daquele grande animá
Todas ficaro zangada,
Começou a se açanhá
E foro se reunindo
Nas pernas do boi subindo,
Constantemente a subi,
Mas tão devagá andava
Que no começo não dava
Pra de nada senti.
Mas porém como a formiga
Em todo canto se soca,
Dos casco até a barriga
Começou a frivioca
E no corpo se espaiado
O zebu foi se zangando
E os cascos no chão batia
Ma porém não miorava,
Quanto mais coice ele dava
Mais formiga aparecia.
Com essa formigaria
Tudo picando sem dó,
O lombo do boi ardia
Mais do que na luz do só
E ele zangado as patada,
Mais força incorporava,
O zebu não tava bem,
Quando ele matava cem,
Chegava mais de quinhenta.
Com a feição de guerrêra
Uma formiga animada
Gritou para as companhêra:
Vamo minhas camarada
Acaba com os capricho
Deste ignorante bicho
Com a nossa força comum
Defendendo o formiguêro
Nos somos muitos miêro
E este zebu é só um.
Tanta formiga chegou
Que a terra ali ficou cheia
Formiga de toda cô
Preta, amarela e vermêa
No boi zebu se espaiando
Cutucando e pinicando
Aqui e ali tinha um moio
E ele com grande fadiga
Pruquê já tinha formiga
Até por dentro dos óio.
Com o lombo todo ardendo
Daquele grande aperreio
zebu saiu correndo
Fungando e berrando feio
E as formiga inocente
Mostraro pra toda gente
Esta lição de morá
Contra a farta de respeito
Cada um tem seu direito
Até nas leis da natura.
As formiga a defendê
Sua casa, o formiguêro,
Botando o boi pra corrê
Da sombra do juazêro,
Mostraro nessa lição
Quanto pode a união;
Neste meu poema novo
O boi zebu qué dizê
Que é os mandão do podê,
E as formiga é o povo.
Do livro Ispinho e Fulô - Patativa do Assaré

Patativa do Assaré em foto de 2002, ano em que faleceu. Acervo: Jornal do Ceará, 2016.
Livros
· Inspiração Nordestina - 1956
· Inspiração Nordestina: Cantos do Patativa -1967
· Cante Lá que Eu Canto Cá - 1978
· Ispinho e Fulô - 1988
· Balceiro. Patativa e Outros Poetas de Assaré - 1991
· Cordéis - 1993
· Aqui Tem Coisa - 1994
· Biblioteca de Cordel: Patativa do Assaré - 2000
· Balceiro 2. Patativa e Outros Poetas de Assaré - 2001
· Ao pé da mesa - 2001
Poemas mais conhecidos
· A Triste Partida
· Cante Lá que eu Canto Cá
· Coisas do Rio de Janeiro
· Meu Protesto
· Mote/Glosas
· Peixe
· O Poeta da Roça
· Apelo dum Agricultor
· Se Existe Inferno
· Vaca estrela e Boi Fubá
· Você e Lembra?
· Vou Vorá
Fonte: Cultura Nordestina, Cadernos Literários, Educação para a Vida, Memorial Patativa do Assaré.
Autor(a): Mimi Barros é professora, educadora, historiadora do Museu do Zebu/ABCZ e colaboradora do CRPBZ.
Baixe, em PDF, o poema completo (O Zebu e as Formigas):
Vídeo:
PATATIVA DO ASSARÉ - AVE POESIA
(Patativa of the Assaré - Bird Poetry)
Longa-metragem. Documentário. Cor e P&B. Tempo: 84 minutos.
Realização: Cariri Filmes e Iluminura Filmes. Fortaleza-CE, 2007
CENTRO DE REFERÊNCIA DA PECUÁRIA BRASILEIRA - ZEBU