Joaquim Martins Borges, um destemido importador numa época proibida Voltar

Você está em: Memórias do Zebu » Importações de Zebu para o Brasil » Quarta Fase (1930 - 1960) Publicado em 13/09/2016 às 15:13:55
Joaquim Martins Borges em fotografia da década de 1980. Acervo: MZ

Nasceu em Patrocínio em 28 de agosto de 1899. De família ligada à agropecuária, era criador de gado Indubrasil em sua Fazenda Gameleiras, situada nas proximidades da capital goiana. Sua relevância nos negócios ligados à zebuínocultura contribuiu para que merecesse destaque social na década de 1950, chegando a receber a visita do Presidente Getúlio Vargas em sua sede de criação. Foi um dos maiores expoentes da raça ao promover e encampar, na oportunidade, as vantagens da criação do Zebu no estado de Goiás.

No âmbito político do Estado Novo, Vargas havia priorizado a pecuária do zebu nacional como política pública governamental. O que pode ser observado através de uma série de ações do governo a exemplo da oficialização pelo Ministério da Agricultura do Registro Genealógico das raças Zebuínas realizado pela SRTM  Sociedade Rural do Triângulo Mineiro em 1938; a criação do importante centro de ciência voltado a pesquisas, a Fazenda Experimental de Criação Getúlio Vargas e da feira Nacional de Exposições de Gado Zebu em Uberaba realizadas anualmente no Parque Fernando Costa desde 1941. Vargas fazia questão de comparecer durante o tempo em que era Chefe de Estado em quase todas essas exposições.

 

Não obstante, entre as décadas de 1920 a 1950, as importações estiveram suspensas devido a uma série de fatores. Um exemplo de grande temor foi a epidemia de Peste Bovina que atingiu a América do Sul, algo que significou um grande golpe aos produtores do continente. Nesse sentido, sérias medidas sanitárias preventivas passaram a ser consideradas pelo Ministério da Agricultura quanto à entrada de animais importados.

 

Outros aspectos carregados de historicidade que merecem menção as imposições de barreiras às importações de zebuínos, diz respeito à percepção que muitos criadores tinham em relação aos anos de selecionamento feitos no Brasil, pois eram colocadas questões que os animais do País estavam em estágio superior aos indianos. Portanto, acreditavam que a importação levaria a uma regressão em comparativo aos avanços decorrentes desse processo de selecionamento. Visão essa compartilhada durante um tempo pela própria SRTM Sociedade Rural do Triângulo Mineiro.


Joaquim Martins Borges, o organizador da viagem a Índia feita por Paulo Roberto Rodrigues da Cunha. (SANTIAGO, 1983)

Por fim, devemos considerar que até os anos de 1920, houvera muitas entradas da Índia, levando o mercado a se saturar de importados. Salva a importação realizada em 1930 por Francisco Ravísio Lemos e Manoel de Oliveira Prata, foi somente em 1952 que Felisberto de Camargo do Instituto Agronômico do Norte, enfrentando as barreiras conseguiu entrar com um lote de sindi importado do Paquistão, após difícil barganha para receber a autorização do Ministério da Agricultura. Contudo, toda liberação apenas ocorreu depois de longo período de quarentena na Ilha Fernando de Noronha.

 

Outro que resolveu enfrentar as legislações vigentes foi Joaquim Martins Borges, o "Quincas", como era conhecido no meio. Porém, esse criador não tivera a mesma sorte que Felisberto de Camargos, pois não conseguiu de maneira alguma a autorização para entrada do gado importado no Brasil.

 

No livro "Da Sagrada Índia ao País do carnaval" (2003) de Rui de Carmo Costa, consta que durante um momento em que Quincas tivera o presidente da República Getúlio Vargas como hóspede em sua fazenda, o mesmo apresentou a ele seu projeto de importação que obteve autorização imediata, mas de maneira verbal, apenas. Principiava então, segundo o pesquisador Alberto Alves Santiago, uma das mais complicadas e difíceis importações de Zebu, que se prolongaria por quase uma década.

 

Paulo Roberto Rodrigues da Cunha, também criador da raça, foi encarregado de buscar em seu nome animais da raça Gir na Índia em 1952, onde chegou no ano seguinte. Essa raça estava no auge de seu prestígio e a autorização oficial ainda não havia sido concretizada. Além disso, em Minas Gerais, muito se falava da raça Indubrasil devido ao sucesso das formas melhoradas.


Uma entre tantas manchetes de um dos momentos difíceis da história do Brasil, o suicídio do presidente Getúlio Vargas em agosto de 1954.

A indignação dos brasileiros foi gritante, e os reflexos foram sentidos na economia, na política, na sociedade e, como era de se esperar, no além-mar.A garantia sobre a liberação pairava no ar, acompanhada de burocracias que faziam transparecer a letargia dos órgãos competentes. Apesar da instabilidade, a Índia passava por um momento muito importante em sua história, pois decorriam apenas cinco anos que havia se tornado um país independente, ou seja, estava em processo de gestação complexo e envolto por violentas guerras civis e religiosas.

 

Acreditavam obter a licença antes do embarque dos animais para o Brasil. Foi então que um acontecimento grave dificultou ainda mais a espera - exatamente em agosto de 1954, o presidente Vargas colocou termo à vida. O país atravessava a era populista. Uma grave crise recaiu sobre o cenário político, emperrando ainda mais a máquina do Estado. A indignação dos brasileiros foi gritante, e os reflexos foram sentidos na economia, na política, na sociedade e, como era de se esperar, no além-mar.

 

No cenário sertanejo, a ação isolada da importação empreendida por Joaquim Borges de Araújo não era bem vista. Principalmente entre os criadores de Indubrasil. Um grande número de pecuaristas consagrados em anos anteriores entendia ser a concorrência com as novas reses "ilegais" uma ameaça aos padrões estabelecidos desde então. A fase de valorização do Zebu não atravessava bons tempos, fazendo com que muitos deles pressionassem as autoridades federais para negar a permissão às novas importações e reforçar as medidas proibitivas. Precipitações tornaram-se inevitáveis. Uma campanha difamatória chegou a circular na imprensa, transformando as preocupações que envolviam a Peste Bovina em caso público calamitoso.


Paulo Roberto R. da Cunha com o gado no navio durante a travessia da fatídica importação dos anos de 1956. Fonte: MZ

Em pouco tempo, Juscelino Kubtischek chegou à presidência prometendo trazer a modernidade para o país, reformulando projetos e desfazendo pendências. O pecuarista resolveu procurá-lo pessoalmente, mas teve que se contentar em ser recebido pelo assessor, que lhe transmitiu o recado para que não desistisse de seus objetivos. O idealizador de Brasília precisava de apoio dos estados para construir a capital monumental e dar prosseguimento ao Plano de Metas, não sendo oportuno aprofundar desavenças entre goianos e mineiros na ocasião. Apesar de não ter recebido nenhuma garantia, continuou a acreditar que o governo iria reagir favoravelmente em tempo adequado.

 

Para não frustrar as expectativas, Quincas Borges decide despachar instruções ao seu enviado na Índia para procurar o Cônsul boliviano em Nova Déli e solicitar o desembarque do gado no país vizinho ao seu. Para dar êxito à estratégia, ele orientou Paulo Roberto a apresentar toda a documentação necessária com relação aos exames sanitários estabelecidos em regime de quarentena. Por etapas, o gado foi desembarcado primeiramente em Montevidéu. O trajeto envolvia a difícil e arriscada tarefa de passar pelo Uruguai e o Paraguai até chegar à Bolívia. Ao saber do acontecido, círculos influentes do Triângulo Mineiro redobravam os esforços junto ao Ministério da Agricultura exigindo a adoção de medidas drásticas para a contravenção. Travava-se de uma queda de braço contra a mais importante organização civil de defesa do zebu no Brasil, a Sociedade Rural do Triângulo Mineiro.

 

No porto da capital uruguaia, os animais foram transferidos para um barco fluvial, seguindo para Assunção, onde passaram para a chata "Maria", puxada pelo rebocador "Companheiro", subindo o Rio Paraguai, até Porto Esperança. Em vista das medidas tomadas pelo Ministério da Agricultura conjuntamente com o da Marinha, visando apreender e sacrificar os zebuínos, Paulo Roberto tornou a descer o rio e na altura do Forte de Coimbra internou-se em território boliviano. As autoridades militares de Porto Busch colocaram o gado sob custódia e mandaram proceder os exames. Verificada a sanidade dos animais - eram 114 cabeças, sendo 6 reprodutores, 72 vacas e 36 bezerros - o Governo do país vizinho permitiu sua permanência na zona da fronteira.

 

(SANTIAGO. 1985 p. 149)


Mapa da trajetória da viagem do importador. (COSTA, 2003. p. 88)

(COSTA, 2003. p. 88)

Diante das dificuldades, Quincas resolveu adquirir terras e investir na construção de instalações próprias para permanecer na região, mesmo que por tempo indeterminado. Currais eram improvisados nas embarcações. Mas seus adversários tudo fizeram para embargar o imbróglio e evitar a entrada do rebanho no Brasil. O criador não desanimou.

 

Mesmo enfrentando problemas sérios com a Bolívia, que vez ou outra acabava confiscando parte do gado, decidiu fazer o que tantos outros pecuaristas fizeram em vários momentos - recorrer ao contrabando. Segundo Santiago, existem muitas versões que confirmam que boa parte dos animais chegava ao Brasil ilegalmente atravessando o Paraguai, que há muito era considerado um paraíso fiscal.

 

A opção mais provável e aceita pelo governo boliviano para promover a liberação do gado indiano legítimo seria a realização de uma troca entre ele e outros animais do próprio rebanho mantido pelo criador no Brasil. Quincas aceitou prontamente, trocando parte de suas reses que estavam no Brasil com as mesmas que estavam alocadas na Bolívia durante todo esse tempo. Mesmo com o gado a caminho do Brasil, muitas denúncias fizeram com que as autoridades se mobilizassem de modo contrário à importação.

 

Quincas teve que sobrevoar a região fronteiriça para localizar o comboio e entrar em contato com o seu filho, que dirigia a operação a essa altura. A ordem foi dada para que todos retornassem naquele momento e aguardassem outra oportunidade. Em pouco tempo, um novo lote contando com uns poucos exemplares indianos foi embarcado para despistar as autoridades do Ministério da Agricultura, que prontamente o apreendeu, dando chance para que efetuasse nesse meio termo o desembarque final de seus melhores exemplares. As narrativas sobre as dificuldades encontradas na ocasião do desfecho são ricas em detalhes curiosos. O fato ocorreu em 1957, onde o importador, juntamente com outros empreendedores, recebeu o seu filho em solo brasileiro.


Criadores brasileiros em Porto Busch na Bolívia, com o lote de zebus importados por "Quincas Borges" e Paulo Roberto. Foram trazidos para o Brasil entre 1958 e 1959. Fonte: Santiago, 1986.

A permanência do gado em continente americano se deu livre da ocorrência da moléstia em questão. O "espantalho da peste bovina" estava "desmoralizado", onde as autoridades não encontraram motivo para impedir a ocasião. Apesar de apresentarem porte reduzido para os padrões da época, rapidamente o sangue desses animais foi misturado a outros que existiam nas fazendas de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás.

 

Embora muitos deles não trouxessem marcas ou identificação que atestassem a pureza, quase ninguém se dispunha a reprovar o ato.. O preço pago pelos garrotes vindos da Bolívia nesse período ultrapassavam cifras elevadas se comparadas aos reprodutores europeus. Joaquim Martins Borges era casado com Angélica Alves Borges, com quem teve sete filhos. Faleceu em 20 de março de 1981, aos 82 anos de idade. Conforme é possível notar, inscreveu o seu nome no rol dos pioneiros que estiveram empenhados em trazer da Índia o gado "formado pela natureza para os trópicos", segundo as palavras de Santiago (1972).

 

Após sofrer todo o tipo de acusações advindas da imprensa, dos concorrentes e do próprio governo, não desistiu de fazer aquilo que acreditava ser importante, enfrentando prejuízos e situações que envolviam riscos extremos. Devido a sua perseverança em acreditar no resultado dessa importação, é reconhecido hoje pela ABCZ como um dos mais ousados importadores de Zebu em todos os tempos.

 

Autor: Thiago Riccioppo - Historiador, Mestre em História pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU; Gerente Executivo do Museu do Zebu/ABCZ e colaborador do CRPBZ.

 

Assista no documentário "Zebu: a Saga do Boi de Cupim" Depoimentos sobre a esta aventura do Joaquim Martins Borges nas importações da Índia.


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