Cachaça: como harmonizar a bebida com diversos tipos de carne e pratos típicos
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Publicado em 13/09/2016 às 15:03:41
- atualizado em 13/09/2016 às 16:13:23

Há quem pense que cachaça é para ser consumida sozinha. Mas existe uma forma de aproveitar melhor o sabor inconfundível de uma boa dose: acompanhando diversos tipos de alimentos em uma Harmonização de Cachaça. Como o próprio nome sugere, ao harmonizar a bebida com alguma receita, busca-se, na verdade, o equilíbrio entre os elementos do prato servido com os da cachaça escolhida, como sabor e o teor alcoólico, proporcionando uma experiência gastronômica única e maravilhosa.
Se pensarmos que a primeira destilação de cachaça foi feita por volta de 1532, podemos concluir que a história da cachaça está extremamente ligada com a história do Brasil.
São várias as versões existentes sobre a origem da cachaça. De certa forma podemos dizer sua história começa quando os portugueses trouxeram da Ilha da Madeira a cana-de-açúcar e as técnicas dedestilação. Uma das versões conta que o destilado teria surgido em Pernambuco quando um escravo, que trabalhava no engenho, deixou armazenada a "cagaça" - um caldo esverdeado e escuro que se forma durante a fervura do caldo da cana.
O líquido fermentava naturalmente e, devido às mudanças de temperatura, ele evaporava e condensava, formando pequenos pingos de cachaça nos tetos do engenho. Inclusive, a origem do sinônimo "pinga" teria surgido dessa versão popular da origem do destilado - uma versão fantasiosa.
Petit Moulin Portatif (Pequena Moenda Portátil) in Voyage Pittoresque et Historique au Brésil (Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil) por Jean Baptiste-Debret, 1834.
Outra versão apresentada pelo historiador Luís da Câmara Cascudo, no seu livro Prelúdio da Cachaça, aponta que a primeira cachaça foi destilada por volta de 1532 em São Vicente, onde surgiram os primeiros engenhos de açúcar no Brasil. Nessa versão de Cascudo, foram os portugueses, depois de aprenderem as técnicas de destilação com os árabes, que produziram os primeiros litros da bebida.
O fato é que a cachaça acompanhou a história do Brasil desde o seu início, passando pelo o ciclo do açúcar, pelo crescimento das fronteiras territoriais e chegando até a urbanização do país. Originalmente, a cachaça era destinada aos escravos mas logo caiu no gosto popular, se tornando um importante componente da emergente economia nacional e, por conseqüência, proliferando sua produção por todo o litoral do Brasil.
Levada pelos comerciantes, a bebida brasileira começou a fazer sucesso também na Europa e na África, onde era usada como moeda de troca para comprar escravos que iam trabalhar na lavoura colonial. Pela relevância econômica da cachaça em terras brasileiras, a venda e troca do produto representavam uma ameaça para a metrópole, já que ajudava a enriquecer os inimigos da Coroa, como os piratas holandeses que se estabeleceram no Nordeste.
Nessa mesma época, Portugal produzia um destilado de uva chamado bagaceira, e o aumento da produção de cachaça fazia com que os colonos se desinteressassem cada vez mais em consumir a bebida portuguesa. Para inibir a produção da cachaça, Portugal estabeleceu um excessivo imposto cobrado dos fabricantes da aguardente, que insatisfeitos com a taxação, se rebelaram contra Portugal, marcando o episódio conhecido como Revolta da Cachaça, em 1660.

Revolta da Cachaça, 1660. Autor: Desconhecido.
Depois dos séculos XVI e XVII, em que houve significativa multiplicação dos alambiques nos engenhos de São Paulo e Pernambuco, a cachaça se espalhou pelo Rio de Janeiro e Minas Gerais devido à descoberta do ouro e pedras preciosas. Durante o século XVIII a economia do açúcar entra em decadência e passa então a ser substituída pela extração de ouro em Minas Gerais.
No início da migração para Minas, as cachaças brancas (puras) eram colocadas em barris de madeira para serem transportadas até Minas Gerais. No tempo da viagem, a cachaça, pelo contato com a madeira, acabava amarelando e tomando aromas e sabores próprios. Há quem diga que daí que surgiu o hábito de envelhecer e armazenar cachaças em barris de madeira.
Hoje, podemos observar que em cidades litorâneas, como Paraty, há um predomínio de produção de cachaças brancas, enquanto que em Minas Gerais, os produtores optam sempre por armazenar suas cachaças em barris para que elas adquiram características sensoriais, como cor e sabor, provenientes da madeira.
Nas regiões de extração estavam também os pequenos alambiques que abasteciam a florescente população urbana que tentava enriquecer com a mineração, apesar dos impostos cobrados pela metrópole portuguesa.
Com a popularidade da cachaça e com o declínio do comércio da bagaceira, novas medidas de taxação e proibição da produção de cachaça foram implantadas pela Coroa. Essas medidas contribuíram para o descontentamento da colônia e motivaram os primeiros ideais independentes, dando origem a Conjuração Mineira e a morte de Tiradentes. Como símbolo dessa luta pela independência do país, a cachaça era servida nas reuniões conspiratórias dos Inconfidentes.
A partir de 1850 com o declínio do trabalho escravo e a intensificação econômica do café, um novo setor social surge no Brasil, os Barões do Café. Com ideais elitistas, fugindo dos hábitos rurais e com uma identificação maior com os produtos e hábitos europeus, a nova elite brasileira rejeitava os produtos nacionais, como a cachaça, tida como coisa sem valor, destinada a pessoas pobres, incultas e, geralmente, negras.
Contra esse posicionamento discriminatório, surgem intelectuais, artistas e estudiosos com o compromisso de resgatar a brasilidade criticando com ironia e inteligência a incorporação da cultura e do costume estrangeiro. Em 1922, em São Paulo, é realizada a Semana de Arte Moderna, onde Mário de Andrade, um dos seus maiores expoentes, dedica um estudo chamado Os Eufemismos da Cachaça.
No decorrer do século XX, outros importantes intelectuais como Luís da Câmera Cascudo, Gilberto Freire e Mário Souto Maior, estudaram a importância cultural, econômica e história para o Brasil.
Nas últimas décadas, importantes acontecimentos têm contribuído para a valorização da cachaça e seu reconhecimento como patrimônio nacional. Em 1996, o então presidente Fernando Henrique Cardosolegitima a cachaça como produto tipicamente brasileiro, estabelecendo critérios de fabricação e comercialização. Em 2012, uma lei transformou a cachaça em Patrimônio Histórico Cultural do estado do Rio de Janeiro.
Hoje, há mais de 4 mil alambiques espalhados por praticamente todos os estados brasileiros, conseqüência de um fenômeno único próprio do destilado nacional: embora a cultura da cana-de-açúcar tivesse se desenvolvido em grandes latifúndios, a cachaça sempre se caracterizou pela produção artesanal em pequenos alambiques familiares, o que ocasionou a enorme quantidade de marcas de cachaça espalhadas por todo o território brasileiro.
Fonte: Alessandra Trindade, autora de "Cachaça, um amor brasileiro"

Cachaças do Brasil, mais de 4.000 alambiques. Fonte: cachaça.net, 2016.
Ela pode ser branca ou amarelada
Brancas: A cachaça pode ou não passar por madeira. É importante destacar que a cachaça não pode ter nenhuma alteração de cor. Nesse caso, o produtor poderá adicionar a marca as expressões Clássica, Tradicional ou Prata.
*A cachaça que não passa por madeira é, depois da destilação, descansada em aço inox e em seguida é padronizada e engarrafada. A bebida apresenta aroma e paladar mais próximos da cana. Agora, algumas cachaças são retidas em madeiras que não soltam coloração (Jequitibá, Freijó, Amendoim) - portanto, elas continuam sendo brancas.
Amarelas: A cachaça foi armazenada ou envelhecida em madeira e apresentou alteração substancial na sua coloração. Nesse caso o produtor poderá adicionar a marca a expressão Ouro.
A cachaça retida em madeira pode ser armazenada ou envelhecida:
Armazenada: A cachaça fica armazenada por tempo indeterminado (2 meses, 5 meses, 1 ano, 3 anos) em tóneis de madeira sem destição de tamanho. Esse processo resulta no chamado "amaciamento" da bebida, influenciado no seu aroma e paladar de acordo com a madeira.
Envelhecida: No mínimo 50 % da cachaça fica durante pelo menos 1 ano em tonéis de no máximo 700 litros. Por ser um tonel menor e por ficar retido por mais tempo, as cachaças envelhecidas acabam apresentando alterações mais evidentes na sua cor, aroma e paladar. As cachaças chamadas Premium são 100% envelhecidas de um a três anos. E a Extra-Premium é 100% envelhecida no tempo mínimo de três anos.
Envelhecimento na madeira. Foto: alambiquemineiro.com, 2016.
O legal na cachaça é a diversidade de tipos de madeira para envelhecimento e armazenamento. É o único destilado (que conhecemos) que pode ser armazenado em tonéis de diferentes madeiras.
O whiskey, a tequila, o rum são todos armazenados em carvalho. Já a cachaça tem inúmeras madeiras para armazenamento e envelhecimento. Cada estado tem suas madeiras típicas, o que resulta numa diferenciação na cor e no gosto da bebida. Inclusive, alguns estudiosos estão analisando os beneficios dessas variedades de madeira para a saúde.
- Carvalho
- Amburana
- Amendoim
- Jequitibá
- Jequitibá Rosa
- Ipê
- Ipê Amarelo
- Bálsamo
- Pau Brasil
- Jacarandá
- Angelim-araroba
- Cerejeira
- Garapa
- Pereira (Acarirana)
- Peroba
- Vinhático
- muitas outras…
A cahcaça na cozinha
1 - Quais são os cuidados básicos que devo ter?
Trata-se de uma bebida de alto teor alcoólico, algo em torno de 38 a 48% de álcool. Seu sabor é marcante, portanto, é preciso usar na dose certa para não estragar uma receita, com seu sabor sobressaindo ao da carne e dos demais ingredientes.
2 - Quais são os pontos positivos de cozinhar com essa bebida?
A cachaça pode agregar maciez, cortar o teor muito gorduroso de algumas carnes e criar um sabor inesquecível. Isso pode variar muito de acordo com a cachaça escolhida. A tradicional, branca, é mais fresca e mais pronunciada.
Já a amarelinha é envelhecida geralmente em tonéis e isso traz a ela nuances amadeiradas. O que se reflete no prato. E há as diferenças: a cachaça de umburana costuma ser mais adocicada e menos amadeirada como uma de carvalho.
3 - Posso colocá-la a qualquer momento do preparo?
Quando levamos a cachaça ao fogo, ela pode ser adicionada no final, se quisermos flambar. Esse processo trará características diferenciadas para a finalização, pois o álcool evapora e o que fica é o sabor adocicado da cana. Dá para flambar um filé em uma cachaça envelhecida em tonéis de carvalho, que vai dar um toque amadeirado na carne. A técnica é usada também em pratos como estrogonofe, que, por tradição, leva conhaque, mas pode ser substituído por cachaça.
4 - E no início da receita?
Também pode! Dependendo do resultado esperado, dá para entrar em outros momentos e ir reduzindo junto ao cozimento, ajudando neste caso a amaciar a carne.
Por exemplo, com a rabada, ela pode ser usada no início, para ir reduzindo e trazendo gostinho especial e maciez à carne; o mesmo vale para os cozidos. Seja no forno ou na frigideira, dá para fazer um molho muito saboroso com cachaça, rapadura, manteiga, pimenta, cheiro verde ou coentro; ou a aguardente, ervas, mostarda e creme de leite. Um bom corte para tal é o contrafilé.
5 - Cachaça também pode ser usada para marinar carnes bovinas?
Pode. E a mais indicada é a branca, que vai fazer as vezes do álcool, indispensável nessa técnica culinária, que pede ainda um ingrediente ácido, ao lado de ervas, especiarias e legumes.
Na prática, alguns exemplos:
Maminha marinada na cachaça com suco de laranja, tomilho, alecrim e alhos inteiros; Costela, fraldinha ou lombo bovino com cachaça, alecrim, tomilho, louro, cheiro verde, mostarda e mirepoix- base francesa de temperos como cebola, aipo, cenoura.
A cachaça geralmente é flambada quando se cozinha a carne
6 - Posso aproveitar essa marinada?
Não só pode como deve. Leve esse líquido para o forno ou panela juntamente com a carne, isso rende um molho que vai reduzir com o fogo.
7 - Quais são as carnes que mais combinam com cachaça como ingrediente culinário?
Hoje em dia é difícil dizer o corte que não combine com uma boa cachaça, o que felizmente nacionaliza cada vez mais a nossa culinária. Mas, se preciso for uma lista, podemos dizer que combinam muito bem com cachaça na panela: maminha, picanha, costela, assado de tira, filé mignon.
8 - Na hora da compra, como escolho uma cachaça para cozinhar?
Sempre de boa qualidade. Não podemos pensar que se não é para beber, pode ser qualquer uma ou a mais barata. Também não pode ter depósitos no fundo da garrafa, pois esses resíduos podem acabar indo para a comida.
9 - Que tipos de cozinha harmonizam com cachaça?
Culinárias típicas regionais casam muito bem com a bebida. Como exemplo temos a cachaça tradicional servida junto com uma rabada, isso dá um toque mais brasileiro ainda ao prato. Um filé ou uma costela, feitos com a aguardente, ficam ainda mais irresistíveis se servidos com uma dose da 'branquinha'. Ela sempre vai ressaltar o sabor e aguçar ainda mais o paladar, além de agregar novas nuances ao paladar por conta dessa harmonização.
10 - E no campo dos coquetéis?
Churrasco vai muito bem com caipirinhas de frutas cítricas. A tradicional, com limão vai bem também com costela bovina no bafo servida com manteiga aromatizada com ervas, quebrando muito bem a gordura desta carne e fazer uma combinação perfeita. Já um drinque como rabo de galo, receita das antigas que ressurge com estilo no mundo da coquetaria, vai bem com o bom e velho contrafilé acebolado.
11 - A cachaça pode acompanhar também outros estilos de cozinha, inclusive os mais sofisticados?
Ela é tão versátil que pode acompanhar desde o aperitivo e entradas como refeições principais, que podem transitar dos tradicionais PFs até receitas requintadas. Basta saber que um prato leve pede uma cachaça com menor teor alcoólico, ao passo que uma preparação mais encorpada, pede uma de grau dosagem de álcool maior.
Alguns casamentos:
Comidas condimentadas pedem uma aguardente mais aromática; pratos gordurosos, pedem cachaças com toque amadeirado. Estas seriam as ditas regras básicas ditadas pelos especialistas no assunto, mas a alquimia que ela nos proporciona pode quebrar qualquer regra, basta testar e experimentar.
Fontes:
Andrea Hunka, da Andrea Hunka Produção e Sabor, de Olinda (PE).
Cleto Oliveira, do Piratininga Bar, em São Paulo (SP).
Daniele Johnnei, do bufê Daniele Johnnei, de Recife (PE).
Simone Valvassori, Fazenda Capoava, Itu (SP).
Manual da Cachaça em Academia da Carne (Friboi)
Mapa da Cachaça em www.mapadacachaca.com.br
Textos adaptados pela equipe do CRPBZ
CENTRO DE REFERÊNCIA DA PECUÁRIA BRASILEIRA - ZEBU