José Deutsch, veterinário e importante selecionador de Zebu na Índia na década de 1960
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Memórias do Zebu » Importações de Zebu para o Brasil » Quarta Fase (1930 - 1960)
Publicado em 16/09/2016 às 14:49:08
No ano de 1914, na Fazenda Macega, em Uberaba/MG, o pecuarista Vicente Rodrigues deu início à criação que é, hoje, o importante rebanho da marca com as iniciais de seu nome - a VR. O núcleo primário deste rebanho foi constituído por 16 novilhas, adquiridas de Hipólito Rodrigues da Cunha. Durante grande parte de sua trajetória, a VR foi administrada pelo filho de Vicente, o pecuarista Torres Homem Rodrigues da Cunha, que aprimorou a qualidade do rebanho VR até seu falecimento em 2010. Um dos motivos fundamentais de sucesso da VR foi buscar o aperfeiçoamento racial e genético contínuo de animais de origem zebuína indiana que comprovassem sua procedência genealógica.
Um dos momentos cruciais para alavancar o rebanho de Vicente Rodrigues da Cunha, dera-se na década de 1930, onde foram adquiridos numa única compra 600 matrizes de Nelore do rebanho de Geraldino Rodrigues da Cunha, proprietário naquela ocasião da marca 22. Esses animais iriam abastecer a Fazenda Pontal do Corumbaíba, recém-comprada por Vicentino Rodrigues da Cunha em Goiás. Além desses animais, foram adquiridos outros seis, de uma fazenda de criação em Dores do Campo Florido, propriedade de José Pedro Dirceu.
Das importações de Nelore que se fizeram nessa época por criadores mineiros e baianos, Vicente Rodrigues também consegue alguns exemplares. Assim foi com Bacurau, trazido para o seu rebanho, ainda garrote. Em 1940, o plantel VR é transferido para Minas Gerais, parte para a Fazenda da Matinha - três anos mais tarde iria para a Fazenda da Ilha (hoje recoberta pelas águas da Represa Volta Grande) e parte para a Fazenda Pontal. Vicente Rodrigues faleceu em 1942. O que se verifica em diversas fontes, como a Revista Zebu publicada em Uberaba, é que na década de 1950, a marca VR estava firmada como uma das mais representativas marcas de animais da raça nelore no país, tocada nesta fase por Olinda Arantes Cunha.
Entretanto, a década de 1960 pode ser considerada como a "grande divisora de águas" para pecuária brasileira, da qual a VR contribuiu preponderantemente. Isso deveu a iniciativa de Torres Homem Rodrigues da Cunha e sua mãe Dona Olinda Arantes programarem uma nova expedição a Índia. O objetivo da expedição era escolher zebuínos da raça nelore, pois a raça se firmava na preferência entre os pecuaristas da região do Triângulo Mineiro a partir da década de 1950, principalmente, pela capacidade de produção que a mesma demonstrava. Como as linhagens de nelore no Brasil estavam fadadas a uma grande escala de consanguinidade. A estratégia, portanto, seria refazer o "caminho das Índias" e trazer novas levas de zebu para refrescar o sangue do rebanho nacional.
Naquele contexto, as discussões sobre a importação tomava conta do meio pecuário. Como estavam sendo feitas entradas no Brasil ilegais de zebuínos indianos através do Bolívia, a Sociedade Rural do Triângulo Mineiro - SRTM decide apoiar a importação do gado indiano, "(...) sendo que para essa regulamentação deverá haver um quarentenário de, pelo menos, dois anos em uma ilha e será condição sine qua non para as importações". Este posicionamento foi norteador para que Torres Homem Rodrigues da Cunha e Dona Olinda Arantes, solicitassem a SRTM em outubro de 1960, o apoio para importação de 30 a 40 animais. (...) "A SRTM, garante-lhes total apoio, desde que a importação fosse regulamentada pelo Ministério da Agricultura".
(LOPES & REZENDE 2000, p. 90).
Touro Kavardi, grande raçador nelore importado por Torres Homem em 1962. Em Hyderabad ao lado do Ministro Nehru. Acervo: MZ
Para tal arranjo, remeteram-se a Índia dois grandes especialistas em zebu de confiança de Torres Homem e Dona Olinda Arantes, o veterinário José Deutsch e José da Silva, o (Dico) que, virou uma espécie de "mito" da pecuária, referência entre os selecionadores no Brasil, por sua capacidade de identificar excelentes zebuínos. Em uma entrevista ao jornal Folha da Região de Araçatuba - SP (2003), Torres Homem se referiria da seguinte maneira a Dico,
A escolha de Dico para a Índia não foi por acaso. Criado na roça, em meio ao gado nelore da Fazenda Rio do Peixe, em Campo Florido, onde seu pai trabalhava, Dico desde menino já mostrava sua habilidade para identificar os animais nelore. Aos 12 anos, quando passava férias na casa de sua irmã mais velha, em Uberaba (MG), ele foi capaz de identificar uma bezerrada e suas respectivas mães, num curral em que os animais estavam todos misturados. O feito chamou a atenção de meu pai, Vicente Rodrigues da Cunha, pecuarista experiente que, impressionado com a capacidade do menino, o contratou na hora. "Dico foi muito importante para a pecuária", afirma Torres Homem. "Ele tinha um olho que identificava os melhores animais de longe", completa.
(ENTREVISTA: CUNHA, Torres Homem. 2003 p. 5).
Durante a segunda semana da expedição, Dico avistou uma fotografia de um nelore que logo lhe tiraria o sono. Tratava-se de Karvadi, nada mais nada menos, do que o tetracampeão indiano e campeão asiático. O primeiro encontro de Dico com Karvadi foi 25 de outubro de 1961, quando o animal tinha 11 anos de idade. Superando as expectativas, adquiri-lo não foi o aspecto mais difícil da empreitada, mas sim resolver os trâmites da documentação para o animal ser liberado pelo governo indiano, bem como a autorização do governo brasileiro para sua importação e dos outros animais escolhidos. No livro de Gitânio Fortes, "O Dono do Olho" (2000), apud Lopes e Rezende (2001), sobre a biografia de Dico, o autor aborda um fato interessante em relação aos selecionadores José da Silva (Dico) e Deutch, quando os mesmos se deparam com surpresas ao desembarcarem na Índia,
A estadia na Índia começou com o pé esquerdo. No aeroporto, Dico e Deutch foram recebidos com muita gentileza. Informaram o propósito da viagem, adquirir animais que seria reprodutores no Brasil. (...) O oficial da alfândega viu a papelada e pediu que os dois aguardassem numa sala. Deutch entendeu que estariam chamando um táxi para eles. Mas em vez de táxi para o hotel, apareceu mesmo foi um carro de polícia. Dico e o veterinário José Deutch foram detidos. Os dois ficaram trancafiados numa cela. Era necessário ficar de quarentena (...) Assim que terminou a quarentena, (...) foram soltos e encaminhados a um órgão do governo indiano encarregado de ajudar no que fosse preciso. No Departamento de Exportações de Animais do Ministério da Agricultura, Dico se arrepiou. Pregada na parede estava a foto de Karvadi, o nelore que idealizava quando fazia seus planos de viagem. (...) Dico se animou. Pediu o endereço do proprietário e o guardou para o momento oportuno.
(FORTES, n/p. apud. LOPES & REZENDE 2000, p. 90).

José Dico da Silva selecionando zebu na Índia em 1962. Acervo: MZ
Passado meses na Índia e muitas cabeças de gado compradas e retidas em Madras, a situação da importação continuava indefinida. Nesse ambiente, o veterinário José Deutch envia um telegrama a Torres Homem informando-lhe que, "[...] caso a questão não fosse solucionada em breve tempo, ele mataria o gado comprado e retornaria ao Brasil". (LOPES & REZENDE 2000, p. 90).
A fim de encontrar uma saída, Torres Homem envia a Índia, seus dois filhos, Joaquim Vicente Prata Cunha e Vicente Rodrigues. Mediante, o surgimento de novos obstáculos à exportação por meio do governo indiano, a mãe de Torres Homem, Dona Olinda Arantes decide também rumar a Índia para resolver a questão e dar guarida aos filhos e Dico. Após mais seis meses, em 1961, com a subida de Tancredo Neves ao cargo de primeiro ministro, foi possível romper com as dificuldades burocráticas na Índia.
Segundo relatos da família, Torres Homem gastou uma fortuna, tendo que vender um edifício de 12 andares no centro de Belo Horizonte para pagar o empreendimento. Apesar disso, a missão obteve um sucesso arrebatador, Dico trouxe para o Brasil 12 touros e 25 vacas nelore, além de outras zebuínos da raça gir, búfalos, caprinos e galos, num total de 181 animais, além daqueles que nasceram em solo indiano antes de serem embarcados.
Imagem do importante genearca Karvadi. s/d
Assim, viriam animais como Karvadi, tetracampeão indiano e supercampeão Nelore da Ásia em 1961. Bima, Campeão dos Puxadores de Pedra, Golias, Campeão de Peso da Índia e Rastã e matrizes como Marna, Campeã da Índia, também viriam Langri, Hiderabad, outra Campeã Indiana, Ashoka (mãe de Badã, Chakar e Isharã), Chilara, Gunã, Sanobar, Andra, Mahanandi, Chintaladevi, Padhu e Alasamu que foram transferidas ao criador baiano Miguel José de Vita entre outras não menos importantes. Desse rebanho sairia animais famosos da raça nelore, como Chummak, filho de Karvadi e Langri, que se tornaria tricampeão nacional brasileiro.
Após a quarentena na Ilha de Fernando de Noronha, os animais finalmente chegam ao continente, onde foram levados para Uberaba. As pessoas param assistir os desfiles dos animais em caminhões e foguetórios no centro da cidade, com faixas e dizeres sobre os feitos dos importadores. Os animais rumaram para a fazenda da Ilha. Como a região ia ser inundada, o núcleo de seleção da marca VR migrou para Araçatuba, em 1964. Quatro anos depois, começou a coleta de sêmen do reprodutor Karvardi para congelamento. Era o início do que hoje é a Central VR. Após dez anos o rebanho VR, Karvadi morreu em 1972.
O touro foi embalsamado e seu corpo protegido dentro de uma arredoma vidro na sala de troféus e medalhas da chácara Zebulândia em Araçatuba. Após voltar a Índia em outras ocasiões, Dico, no final dos anos 70, conseguiu trazer sêmem de outros reprodutores para o Brasil. O importante selecionador morreu em março de 2003, aos 80 anos, dedicando-se sua vida ao zebu.
Autor: Thiago Riccioppo - Historiador, Mestre em História pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU; Gerente Executivo do Museu do Zebu/ABCZ e colaborador do CRPBZ.
Assista a seguir ao documentário sobre a história da seleção de animais zebuínos feita pela VR em duas partes distintas:
CENTRO DE REFERÊNCIA DA PECUÁRIA BRASILEIRA - ZEBU