Torres Homem, Dico & o touro Karvadi - considerado o "pai da linhagem nelore no Brasil" Voltar

Você está em: Memórias do Zebu » Museu do Zebu » Histórias & Estórias Publicado em 19/10/2016 às 09:42:52
Karvadi, em fotografia rara da década de 1960. Acervo: MZ

Um touro imponente, puro e já famoso em sua terra de origem. Quem gosta de Zebu deve ter ouvido falar ao menos uma vez na história do Karvadi, talvez o mais importante genearca da raça Nelore. Conheça a saga da família Torres Homem Rodrigues da Cunha que, com o auxílio de Dico, o "dono do olho", adquiriu o lendário animal diretamente na Índia nos anos de 1960, década considerada fundamental para a trajetória da zebuinocultura no Brasil

O pecuarista Vicente Rodrigues da Cunha deu início à criação do que hoje corresponde à famosa marca com as iniciais de seu nome - a VR, uma entre as mais importantes empresas pioneiras na seleção e no melhoramento genético do Zebu brasileiro. O núcleo primário desse plantel foi edificado através da aquisição de 16 novilhas "puro sangue", compradas do importador Hypólito Rodrigues da Cunha. Restava à família buscar e promover o aperfeiçoamento racial e genético contínuo de zebuínos de origem indiana, cuja procedência genealógica e atestado de pureza fossem realmente comprovados num tempo considerado desafiador para a definição dos rebanhos que estavam se formando pelo país.

 

Um dos momentos cruciais da investida dera-se na década de 1930, quando foram adquiridos numa única compra 600 matrizes do rebanho de Geraldino Rodrigues da Cunha, proprietário naquela ocasião da marca 22. No entanto, foi, sobretudo, a década de 1960 a "grande divisora de águas" para a pecuária brasileira: Torres Homem Rodrigues da Cunha e sua mãe Dona Olinda Arantes programaram uma nova expedição à Índia, quando o objetivo maior era selecionar o nelore, pois a raça se firmava aos poucos como preferida entre os pecuaristas da região do Triângulo Mineiro desde a década de 1950.


Torres Homem e um pesquisador norte-americano visitante. Década de 1960. Acervo: MZ

Como as linhagens no Brasil estavam fadadas ao risco da consanguinidade (mistura) em sua essência, a estratégia seria refazer o "caminho das Índias" e trazer novas levas de Zebu para refrescar o sangue do rebanho nacional. Remessas ilegais de gado indiano entravam no Brasil através do Bolívia, quando a Sociedade Rural do Triângulo Mineiro - SRTM decidiu apoiar novamente a importação, sendo necessária para a regulamentação dela a realização periódica de uma quarentena (descanso, repouso) do rebanho por, no mínimo, dois anos em uma ilha durante o trajeto e na condição sine qua non, ou seja, indispensável, essencial. (LOPES & REZENDE 2000, p. 90).

 

Atendido os protocolos do Ministério da Agricultura, o apoio foi certeiro. Despacharam para a Índia dois grandes especialistas em Zebu, ambos da confiança de Torres Homem: o veterinário José Deutsch e o selecionador de gado José Dico, o "Dico", homem que, devido à sua capacidade genial de identificar excelentes reprodutores, tornou-se uma espécie de "mito" no discurso dos zebuzeiros. "Ele era o dono do olho que identificava os melhores animais de longe", ressaltou o patrão pouco antes de morrer. Descoberto na década de 1930 por Vicente, aos 11 anos de idade foi contratado como gerente da fazenda da família após provar ser capaz de separar, sem erro, três lotes de animais que foram acidentalmente misturados. Sua acuidade visual era única e, portanto, genial para aquele tempo.


Dico com um animal da raça gir em fotografia na Índia durante a década de 1960. Acervo: MZ.

Durante a segunda semana da expedição, Dico avistou a fotografia de um nelore que logo lhe tiraria o sono - tratava-se de Karvadi, nada mais que o tetracampeão indiano e garnde campeão asiático. O primeiro encontro deles foi em 25 de outubro de 1961, quando o animal tinha 11 anos de idade. Superando as expectativas, adquiri-lo não foi o aspecto mais difícil, mas sim resolver os trâmites de toda a documentação que deveria ser liberada pelo governo indiano, bem como obter rápida autorização dos órgãos brasileiros competentes. A missão durou 1 ano e 9 meses. Torres gastou uma fortuna, tendo que vender um prédio de 12 andares no centro de Belo Horizonte (MG) para pagar a peripécia.

 

Dico trouxe para o Brasil, ao todo, 12 touros e 25 vacas nelore, além do gir, búfalos, caprinos e galos, sendo um total de 181 animais. Isso, fora os nascimentos ocorridos em solo indiano e embarcados em um navio de três andares. Quatro anos depois teve início a coleta de sêmen do reprodutor Karvardi, agora para congelamento. Era o auge do que hoje é a Central VR, uma das pioneiras nesse tipo de atividade. Infelizmente, após dez anos da formação do rebanho, o animal morreu em 1972. Foi embalsamado e protegido numa redoma vidro na sala de troféus e medalhas da chácara Zebulândia, em Araçatuba-MG.

 

Embora a história estivesse longe de ser encerrada, após retornar à Índia em outra ocasião no final da década de 1970, Dico conseguiu trazer sêmen de outros relevantes reprodutores. Depois de anos de experiência e amor aos animais de criação, além de manter completa devoção ao estilo caipira da vida que levava na fazenda, o lendário selecionador morreu em março de 2003, aos 80 anos, depois de dedicar toda uma existência à seleção da raça que é atualmente paixão nacional entre a maioria dos pecuaristas brasileiros.


Relato de Dico, o "dono do olho" e selecionador de zebu na Índia. CRPBZ, 2016.

Decorridos cerca de 45 anos após sua morte, resquícios do Karvadi ainda estão presentes em pelo menos 80% do rebanho zebuíno nacional, por meio de seus descendentes. O boi ajudou a promover o melhoramento genético do nelore, que no início era feito por cruzamentos e não por inseminação artificial. Esse aspecto é talvez o diferencial que garante ainda mais autenticidade ao animal. Como protagonista em pleno exercício durante uma fase considerada decisiva para o Nelore, Karvadi foi fundamental para a conclusão de uma longa trajetória de adaptação da raça no país, por exemplo.

 

Sem dúvida, a coleta de material genético do touro considerado o pai da linhagem da raça no Brasil é tão valiosas que ainda restam algumas ampolas com sêmen congelados na fazenda VR, sem previsão de venda. Essas pequenas amostras são, segundo especialistas, capazes de quebrar o recorde em valores a cada leilão concorrido. O último deles aconteceu em 2007, quando uma só ampola foi arrematada por R$ 30 mil - P.s: a de um animal semelhante custava na época cerca de R$ 10 mil, no máximo.

 

Texto e pesquisa: Thiago Riccioppo (Historiador / Gerente Executivo do Museu do Zebu) e Mimi Barros (Historiadora do Museu do Zebu / ABCZ e redatora do CRPBZ)

 

Assista, a seguir, ao documentário Torres, Dico & Karvadi (2014) produzido pela Agroquima. A direção é de Wagner Indaiá, com a contribuição do historiador Thiago Riccioppo nas pesquisas e documentação citadas no filme:


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