Dupla aptidão: Nem leite, nem carne? Voltar

Você está em: Pesquisa » Divulgação de Estudos e Pesquisas Publicado em 28/10/2020 às 08:49:35
Foto Ilustrativa

Dupla aptidão: Nem leite, nem carne?
Maria Gabriela Campolina Diniz Peixoto1, Eula Regina Carrara2, Fabyano Fonseca e Silva2, Frank Ângelo Tomita Bruneli1, Paulo Sávio Lopes2
1Embrapa Gado de leite
2Universidade Federal de Viçosa

Dupla aptidão: Nem leite, nem carne?

Maria Gabriela Campolina Diniz Peixoto1, Eula Regina Carrara2, Fabyano Fonseca e Silva2, Frank Ângelo Tomita Bruneli1, Paulo Sávio Lopes2

1Embrapa Gado de leite

2Universidade Federal de Viçosa

Uma breve introdução

A população bovina mundial é diversa e se caracteriza por sua distribuição geográfica e diferentes características morfológicas, adaptativas e aptidões produtivas. A expansão da criação de bovinos até a dimensão atual foi decorrente das demandas da população humana e está diretamente relacionada ao seu crescimento.

Os bovinos fornecem vários produtos a diferentes indústrias. Mais recentemente, os bovinos também têm sido amplamente usados na experimentação científica como modelos biológicos para humanos, permitindo ao homem avançar nos conhecimentos sobre reprodução, imunologia, doenças etc. A máxima "do boi não se perde nem o berro", portanto, procede. Mas, vamos nos ater à produção de alimentos, nobre função da bovinocultura.

São várias as raças bovinas mundialmente distribuídas, classificadas em função de possuírem características semelhantes, definidas por sua origem e localização geográfica. Características peculiares fizeram com que 800 destas raças bovinas fossem selecionadas pelo homem desde sua domesticação, com os mais variados objetivos, fazendo destes animais, até mesmo, símbolos de prosperidade, poder político e religiosidade ao longo da história da humanidade.

O homem desde então vem contribuindo artificialmente para as mudanças genéticas nos bovinos, que foram anteriormente promovidas pelas forças naturais no processo evolutivo das espécies. A evolução artificial, batizada de melhoramento genético, tem utilizado ferramentas matemáticas, computacionais e moleculares para atender aos interesses da cadeia produtiva. Neste cenário, duas espécies bovinas se destacaram: Bos taurus (taurinos) e Bos indicus (zebuínos), cada qual com suas particularidades raciais, aptidões e tempo de intervenção humana pelos diferentes processos seletivos. E é exatamente sobre as aptidões e intervenção humana que vamos tratar neste artigo.

A partir da prática de endogamia, primeiro método sistematicamente usado para promover mudanças na população, surgiram as raças que atualmente respondem pela produção de leite e carne no mundo. Ao longo do tempo, algumas raças se revelaram como boas produtoras de carne, outras como boas produtoras de leite, e tiveram ainda aquelas que se destacaram em ambas as características. Precisamos, neste momento, fazer uma observação: todas estas revelações foram inicialmente fruto da observação humana sobre o desempenho animal e também dos resultados obtidos em sua intervenção empírica, ou seja, sem base científica, nas populações bovinas, buscando manter aqueles animais que julgavam fenotipicamente melhores do ponto de vista de seu interesse.

A especialização animal para produção de um determinado alimento, no nível que conhecemos atualmente, veio com o objetivo de atender à grande demanda por alimentos de uma população mundial crescente. Desta forma, as mudanças foram ganhando proporção e a intensa utilização dos conhecimentos técnico-científicos gerados conduziu algumas raças à intensa especialização para corte ou para leite, enquanto outras, motivo de grande polêmica, seguiram o caminho da dupla aptidão (carne e leite).

Raças de dupla aptidão

Em muitos países, alguns produtores preferiram explorar a dupla aptidão de algumas raças bovinas neles desenvolvidas. Na tabela 1, são apresentadas algumas raças bovinas consideradas de dupla aptidão e criadas em vários países dos cinco continentes.

Tabela 1. Principais raças bovinas de dupla aptidão no mundo

Região

 

Raças

África

 

Abergele, Adamawa, Ankole, Drakensberger, Mpwapwa, N'Dama e Tswana

América

 

Blanco Orejinegro, Caracu, Carora, Gir, Guzerá, Hatón del Valle, Jamaica Black, Randall, Sindi e Texas Longhorn

Ásia

 

Chinese Northen Yellow, Dajal, Dhanni, Isralei Red, Kabin Buri Cattle, Kankrej, Ongole, Phillipinne, Red Sindhi e Tharparker

Europa

Arouquesa, Asturian, Beef Friesian, Belgium Blue, Bianca Val Padana, Blonde d'Aquitaine, Braunvieh, British White, Caldelana, Danish Red, Devon, Dutch Belted, Dutch Friesian, Dutch Red and White, Eastern Finncattle, English Longhorn, Fleckvieh, Finish, Galician Blonde, Gelbvieh, German Red Pied, Gloucester, Jutland, Kholomogory, Maronesa, Meuse-Rhine_Issel, Montbéliarde, Normande, Norwegian Red, Brown Swiss, Piedmontese, Pinzgauer, Polish Red, Red Poll, Rúbia Gallega, Russian Black Pied, Simmental, Swedish Red Polled, Tarentaise, Vorderwald e Yakutian

Oceania

Belmont Red, Illawarra e Red Polled

É interessante notar que muitas destas raças estão em países desenvolvidos, nos quais programas de melhoramento genético focados na especialização para produção de leite ou de carne têm sido conduzidos há anos. Por que estes animais ainda são criados nestes países? Certamente possuem algum diferencial. Podemos salientar primeiramente a adaptação ao meio onde se desenvolveram e têm sido criados, que implica em menor custo de produção. Mas muitas delas produzem leite ou carne para nichos de mercado, ou seja, produtos desenvolvidos em ambiente físico e biológico específico que lhes proporcionam características peculiares e distintas de produtos de outra origem. A cadeia dos produtos "terroir", como são denominados, é amplamente disseminada nestes países e muito rentável, sendo tais produtos certificados por selos de origem.

Seleção para dupla aptidão

Nas raças bovinas, em geral, a seleção genética proporcionou ganhos que resultaram em animais de corte com maiores taxas de crescimento e animais de leite com maior capacidade para produzir leite. No entanto, esse progresso foi acompanhado por declínios na saúde e fertilidade dos animais, tornando a baixa fertilidade a principal razão para o descarte (Wathes et al., 2014). Assim, considerar a seleção para diferentes propósitos é fundamental para uma melhor eficiência geral dos rebanhos (Mollah et al., 2015).

A seleção para diferentes propósitos deverá aumentar nas populações animais no curto e médio prazo com o auxílio dos avanços em conhecimentos e tecnologias, principalmente da genética e reprodução (Hume et al., 2011). Em muitos países, os produtores de leite têm buscado a alternativa de usar sêmen de raças de corte em vacas de menor mérito genético com o propósito de se obter fêmeas de melhor qualidade (saúde e bem-estar) para a reposição de seu rebanho, além da possibilidade de destinação de novilhas para o corte (Barkema et al., 2015).

No Brasil, foi proposto um esquema de produção de carne para os sistemas de produção de leite, que geralmente não têm destinação para o macho. Este esquema baseia-se na alternativa de cruzamentos entre taurinos de leite e zebuínos de corte, permitindo aumentar a receita da fazenda leiteira com a venda de animais e o resultado econômico do sistema de produção (Santos et al., 2011). Mas este esquema, porém, não resulta da seleção para a dupla aptidão natural das raças.

A seleção conjunta para peso e produção de leite gera controvérsias. Por exemplo, a correlação genética entre peso ao desmame e produção de leite pode ser negativa (McHugh et al., 2014), podendo reduzir a capacidade materna das vacas se o peso ao desmame for considerado como único critério de seleção (Miller e Wilton, 1999). Por outro lado, há indícios de que essa correlação possa ser positiva e que o efeito materno para peso ao desmame possa ser um indicador da produção de leite em bovinos de corte (Gregory e Cundiff, 1980). Assim, o peso ao desmame refletiria a expressão dos genes para produção de leite da mãe e seu potencial para produção de leite.

O Guzerá é tido no Brasil como uma raça zebuína de dupla aptidão e dados de desempenho em características leiteiras e de corte são aferidos há anos em vários rebanhos colaboradores dos programas de melhoramento da raça. Embora as avaliações genéticas para leite e corte sejam realizadas de maneira independente, o fato das bases de dados serem geneticamente conectadas permite que touros avaliados para características leiteiras também possuam avaliação para características de corte, cujos valores genéticos (DEP) são publicados no sumário de animais "duplo provados".

Assim, observam-se no sumário de touros Guzerá animais com excelente mérito genético para produção de leite e excelente mérito genético para produção de carne; animais excelentes para produção de leite e medianos para produção de carne; animais medianos para produção de leite e de carne; animais medianos para produção de leite e excelentes para produção de carne; até os animais que são excelentes apenas para produção de leite ou excelentes apenas para produção de carne. Há animais para atender a todos os interesses de melhoramento genético dos rebanhos e os produtores podem definir a pressão de seleção em cada uma das características.

Diante da polêmica em torno da seleção para dupla aptidão, recentemente foi realizado estudo para avaliar a associação genética entre características de leite, de corte e de reprodução na raça Guzerá, e verificar se esse objetivo é viável (Brito et al., 2020). Os resultados mostraram correlações genéticas positivas entre as características de leite e corte, e, negativas, porém favoráveis, entre características produtivas (leite e corte) e reprodutivas (idade ao primeiro parto), foram (Tabela 2). As correlações genéticas obtidas revelaram que a seleção conjunta para estas características alcançaria respostas de pequenas a moderadas, mas favoráveis em cada uma delas; ainda que menor do que aquelas possíveis se a seleção fosse direcionada a apenas uma delas.

 

 


Tabela 2

Presume-se, portanto, que grande parte das correlações negativas entre características de produção de leite e ponderais observadas em outros estudos tenham sido decorrentes da seleção conjunta para aumento da produção de leite e tipo anguloso e descarnado, que ocorreu em algumas raças leiteiras especializadas. A seleção direta para uma única característica também pode resultar em perdas no desempenho das demais, em função de correlações genéticas existentes entre elas ou ao acaso.

Considerações finais

Animais de dupla aptidão, geneticamente melhorados, atenderiam aos objetivos dos sistemas de produção com foco no duplo propósito, ou seja, de produzirem carne e leite. O melhoramento para produção de leite também é interessante para rebanhos que têm o corte em seus objetivos, pois permite o desmame de bezerros mais pesados. Ademais, o uso de animais duplo provados representa uma alternativa para os sistemas de produção de leite a pasto, principalmente de menor escala produtiva, permitindo-lhes maior versatilidade econômica pelo retorno obtido com a venda dos machos. O balanço entre seleção para leite ou corte deve, no entanto, ser definido pelo produtor, em função dos objetivos de seleção de seu rebanho. Portanto, a seleção para dupla aptidão é viável.

Conclusão

Dupla aptidão: tanto leite, quanto carne, com boa produção de leite e boa produção de carne!

Referências citadas

BARKEMA, H.W.; VON KEYSERLINGK, M.A.G.; KASTELIC, J.P. et al. Changes in the dairy industry affecting dairy cattle health and welfare. Journal of Dairy Science, v.98, p.7426-7445, 2015.

BRITO, L. C.; PEIXOTO, M. G. C. D.; CARRARA, E. R.; SILVA, F. F.; VENTURA, H. T.; BRUNELI, F. A. T.; LOPES, P. S. Genetic parameters for milk, growth, and reproductive traits in Guzerá cattle under tropical conditions. Tropical Animal Health and Production, p. 1-7, 2020.

GREGORY, K. E.; CUNDIFF, L. V. Crossbreeding in beef cattle: evaluations of systems. Journal of Animal Science, v. 51, p. 1224-1242, 1980.

HUME, D.A.; WHITELAW, C.B.A; ARCHIBALD, A.L. The future of animal production: improving productivity and sustainability. Journal of Agricultural Science, v.149, p.9-16, 2011.

MCHUGH, N.; CROMIE, A.R.; EVANS, R.D.; BERRY, D.P. Validation of national genetic evaluations for maternal beef cattle traits using Irish field data. Journal of Animal Science, v.92, p.1423-1432, 2015.

MILLER, S.P.; WILTON, J.W. Genetic relationships among direct and maternal components of milk yield and maternal weaning gain in a multibreed beef herd. Journal of Animal Science, v.77, p.1155-1161, 1999.

MOLLAH, M. F. K.; GOFUR, M.R.; ASADUZZAMAN, K.M.; BHUIYAN, M.M.U. Conception rate of non-descript Zebu cows and its attributing factors in Bangladesh. Research Journal of

SANTOS, V.S.; MAIA, T.L; TOLENTINO, D.C.; RUAS, J.R.M.; MENESSES, A.C.A.; COSTA, M.D. Avaliação econômica da venda de animais sobre a margem bruta total em sistema de produção de leite com vacas F1 HolandêsxZebu. In: Seminário de Pesquisa e Pós-graduação, XII, 2011, Montes Claros. Anais... Montes Claros: Unimontes, 2011.

WATHES, D.C.; POLLOTT, G.E.; JOHNSON, K.F.; RICHARDSON, H.; COOKE, J.S. Heifer fertility and carry over consequences for life time production in dairy and beef cattle. Animal, v.8, p.91-104, 2014.


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