Causo e Conto - O CANIVETINHO - Por Hugo Prata
Voltar
- O CANIVETINHO Por Hugo Prata** Seu Eduardo, também conhecido como SÔ Dudu da Mula Preta, era pra lá de conservador. Criado na citada fazenda Mula Preta e habituado a usos e costumes tradicionais. Fora criador, assim também como o foram seus pais e avós. Seus netos podiam ser moderninhos, mas não tiveram nem de longe uma infância como a sua. Criado solto, livre, pés descalços, camisa aberta e cabelos ao vento. Galopava em pêlo nos pastos, e deliciava-se com mangabas, curriolas, bacuparis e outros frutos que encontrava no cerrado. Se tinha sede apeava, ajoelhava-se na beira do corguinho, e com a mão em concha saciava-se com água friinha. Biscoito de polvilho, bolo de fubá, queijo fresco, frango ao molho pardo, tutu com lingüiça frita, torresmos e outras delícias que Dona Candoca fazia para os filhos. E hoje, que diferença. Seus netinhos chegavam de São Paulo, pra passar férias na fazenda, e era um dó. Meninada mais boba do que frango de granja. Não sabiam fazer nada sozinhos. Sempre limpinhos, de sapatos e meias, se apavoravam com chuvas, não pisavam no barro, e tinham nojo de bosta de vaca, que chamavam de cocô. Lavavam as mãos a toda hora e tinham medo até de grilos. De sapo então nem se fala. Mas como ia dizendo, SÔ Dudu da Mula Preta era contra modernismos. Nada de rádios de pilha, calculadoras, microondas, relógios digitais, computadores e outros modernismos. Fazia as contas à mão, pra exercitar o miolo e a pensação. Continuava fiel ao ovo caipira, banha de porco, chapéu e guarda-chuva. Seu cigarro era de palha, legítimo fumo goiano, cheiroso e forte. Isqueiro a gás nem pensar. Como concessão máxima, deixou a binga com fuzil e pedra pela "caxa de fósfos". Seu papo era gostoso, cheio de me contaram, falaram, vô te conta, no meu tempo e antigamente. O pitar um cigarro de palha demandava tempo. Começando pela escolha da palha lá no paiol, com muita sabedoria e competência. Não era serviço para qualquer um. O fumo era picado com canivete e colocado na concha da mão esquerda, que já segurava a palha entre os dedos. Com cuidado e capricho a seguir se desfiava o fumo. A palha bem lisinha era aparada e o fumo espalhado com o indicador. Enrolava-se o cigarro passando a beirada pelos lábios pra colar. O cigarrinho era uma boa-obra prima de artesanato, bom gosto e aroma. Acendia-o, dava uma chupada gostosa, olhava a cinza e a derrubava com o mindinho. E por falar em picar o fumo, SÔ Dudu tinha um canivetinho que eu namorava. Cabo de bálsamo, lisinho e bem rebitado. A lâmina já bastante fina, de tanto ser amolada, cortava até cabelo."- Tenho amor por este canivetinho, dizia ele. Novo foi de meu finado avô, que Deus o guarde, e do finado meu pai, que esteja com Deus, e procuro conservá-Io sempre comigo. Tenho certeza que meu filho num vai usar ele, pois quando fuma é essa frescura de cigarro de papel com filtro. O macho de antigamente, que dormia quando podia e levantava quando era preciso, que mijava contra o vento, pegava peixe nadando, comia mel no favo, e pitava palheiro grosso, acabou. Hoje nem respeita mais os velhos e se chama pai de ocê. Não se cultua santos e nem se faz promessas. Ao inveiz de lingüiça, sarcicha, ao invez de pimenta um tal de quexupe e a boa pinga trocada pelo uísque, coce-cola e outras mixarias. Este canivetinho, lembrança de meu saudoso avô, tem mais de cem anos. Não dou, num vendo, num empresto e num quero outro. Já troquei o cabo treis veiz e a lâmina duas veiz, mas guardo ele com respeito e sodade" **especial para o Museu Virtual da ABCZ
CENTRO DE REFERÊNCIA DA PECUÁRIA BRASILEIRA - ZEBU
©2015-2025 - Associação Brasileira dos Criadores de Zebu - Todos os direitos reservados