Causo e Conto - CARRUAGEM DE FOGO - Por Hugo Prata Voltar

                -                                                                                               CARRUAGEM DE FOGO

                                                                                                                 Por Hugo Prata**


         O ano era de 1907 e o Coronel João da Silva Prata, afadigado de andar de carros de bois, mandou buscar na Inglaterra um tal de automóvel, que estava revolucionando o mundo. Eram o futuro e o progresso que chegavam a Uberaba. Custou 12 contos de réis e a compra só foi possível em sociedade com o Major Domingos e o Alberto Cerqueira.
Parece que naquele tempo já haviam inventado o conto do vigário, pois o coronel levou um. Não sei se era possível chamar de automóvel aquela caldeira montada em quatro pneus, "muciços", de borracha, adaptados a pesadas rodas de ferro fundido. Sem amortecedores, molas e outras frescuras. Coisa prá macho. A parecença era mais com uma locomotiva, pois era movido a vapor. E o dinossauro de ferro foi solenemente batizado pelo vigário com o nome de Nossa Senhora da Conceição das Alagoas. Aquilo era muita prafentice do João Prata. O homão pensava grande.
         Fez a viagem de inauguração até Conceição das Alagoas, distante uns 60 quilômetros, e que levou oito dias.
         Um empregado madrugou pra "senta fogo na fornaia" e, lá pelas 8 horas, o pai d'égua do bicho estava em condições de rodar.
         Soltava fagulhas por todos os lados, queimando as saias rodadas das donzelas e matronas que se aventuravam por perto. Esguichava vapor aos silvos e, garantia o Puca, que aquele bafo era mortal. Segundo dizia a Maria Mandioca cada assoprada daquelas dava prá pelá um capado.
         Na boléia com muita pose, categoria e conhecimento, um maquinista aposentado da São Paulo Railway Company. Macacão azul, listrado de branco, botas, bonés, luvas e óculos de soldador. Por cima do macacão um avental azul, de mangas compridas e cheio de bolsos.
         Uns dez camaradas com enxadas, enxadões, picaretas, foices e baldes acompanhariam o cortejo a pé. Tonho Carreiro e Mané Picão, carreiros experimentados e o candeeiro Tonho da Denga, levavam o carro de bois, com a traia de cozinha e de arranchar. Os bois foram escolhidos a dedo com bois-de-coice enquartados e troncudos e bois-de-guia mais levianinhos, mas espertos e obedientes. Se o trenhão atolasse seria retirado no muque. Dos bois é claro.
         Caldeira quente, vapor esguichando, e o estrupício estava pronto. Os passageiros, devidamente protegidos por guarda-pós, luvas, óculos e chapéus, acomodavam-se atrás. Soltou-se o freio, engatou-se a marcha única, o bichão gemeu, tremeu e andou. O comércio havia fechado as portas com medo das brasas da chaminé e a cavalhada empinava assustada e disparava entortando carroças e virando charretes. Os burros, mexendo nervosamente as orelhas, empacavam. A cachorrada latia enfurecida, ganindo, mas de longe. Canzarrões onceiros, conhecidos pela brabeza de pegar suçuaranas no dente, mijavam pernas abaixo e se mantinham à distância.
         No primeiro dia mal deu prá sair da cidade. O consumo de água era enorme e, de quando em vez, a caldeira secava. Paravam o monstrengo e, se não havia um corgo ou rego d'água próximo, cavucavam uma cisterna, colhiam água e matavam a sede do fogaréu.
         Não havendo estradas o caminho era pelo cerrado mesmo. Seriemas corriam assustadas, corujas arregalavam mais ainda os olhos quando o bichão aparecia, bufando, contornando lobeiras e amassando gravatas. A chaminé expelia brasas que iniciavam pequenos incêndios em campos de mato ralo. Um bando de camaradas tratava de apagar o fogo e apanhar a lenha para a fornalha.
         Na hora do almoço a comitiva parava para queimar o alho. Arroz, feijão, carne seca, abóbora, mandioca e linguiça. No quarto dia rareou a comida. Felizmente um dos camaradas era o Papau, caçador emérito, que deixou as ferramentas e agarrou a espingarda. Codornas, perdizes, tatus, seriemas, tudo servia. Respeito apenas a urubus, corujas e Joões-de-barro. Turmazinho sempre pegava traíras, bagres, piaus e matrinxãs.
         Contaram que em uma das paradas aproximou-se o Meleta, crioulinho curioso. Olhos esbugalhados, mijando de medo e que, ao primeiro esguicho de vapor deu no pé. Chegando cm casa anunciou: o "bichão do trem taí". Num amarelou, mas ficou meio ruço.
         Depois da solene recepção em Conceição, com foguetes, discursos e bênçãos do padre Menezes, o famoso automóvel voltou a Uberaba. Só com o motorista e os trabalhadores. Os passageiros preferiram viajar a cavalo ou de carro de bois. Tinham pressa e o estrupício era muito inzoneiro.
         Com mais de um mês, prá satisfação da cachorrada, burros e cavalos, o bichão foi aposentado.

         Nota - O Coronel João Prata era avô de Arnaldo Rosa Prata e João Antônio Prata, ex-presidente e ex-vice-presidente da ABCZ. Era também avô de Mardônio Prata dos Santos, ex-secretário da ABCZ e deste colunista.



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