Causo e Conto - A ALEGRIA DO NATAL - Por Hugo Prata
Voltar
- A ALEGRIA DO NATAL
Por Hugo Prata**
Desde há muito não via o Gerôncio, e foi com alegria que o encontrei, saindo da farmácia do Juquita. Estava cabisbaixo e triste, muito diferente do Gerôncio de minha infância. Crescemos, estudamos, brincamos e vadiamos juntos. Gostávamos um do outro e passamos alegres momentos armando arapucas para rolinhas, mariscando lambaris e piaus no córrego da Mata, ou nadando no poção. Separamo-nos quando fui estudar, interno, no Colégio dos Maristas. Ele ficou e acabou recebendo, por herança, o sítio da Fartura. Casou-se com a Norinha, namorada desde a infância e gerou uma penca de filhos. Vivia no sítio, produtivo, e feito à custa de muito suor, trabalho e calos nas mãos. De suas vaquinhas tirava um leite e o transformava em queijos, requeijões e doces, que eram vendidos na cidade. Ainda para seu consumo plantava arroz, feijão, milho, abóbora e mandioca. As sobras serviam para alimentar os porcos carunchos, que cevavam no chiqueiro, e galinhas. Daí é que saíam os ovos, frangos, linguiças, lombinho e a banha usada na cozinha. Produzia ainda fubá, farinha de milho, de mandioca e polvilho. Um variado pomar e horta, que com frutas e hortaliças abastecia sua casa. Econômico no falar, vestir e gastar, mas com mesa sempre farta.
Andamos pela praça e aos poucos fui arrancando os motivos de sua tristeza. Parentes de São Paulo convidaram-se para passar o fim do ano no sítio da Fartura. Chegaram lá pelo dia 20 numa barulhenta Kombi. Um bando de filhos reforçados por alguns vizinhos. Tomaram conta do sítio. Desalojaram os filhos de suas camas cedidas aos primos, e os meninos foram dormir em colchões no chão da sala. A vida mudou. Ninguém mais dormia ou levantava cedo. A algazarra diminuía lá pela meia-noite, e ninguém levantava antes das nove. Exceto o pobre do Gerôncio, acostumado a dormir com as galinhas e a levantar-se ao primeiro canto do galo.
As vacas passaram a ser ordenhadas às 10h, quando a parentada ia ao curral tomar o leite fresco, com açúcar mascavo, e ordenhado diretamente nos copos. Era uma delícia, afirmavam, leite puro, gordo, espumante, morno, sem água, diferente do leite da cidade. De volta à casa. mais leite agora com café, e acompanhado de queijo fresco, biscoitos, broas, bolos e bolachas, estocados em 15 dias de preparativos.
Logo as latas ficaram vazias. Acabaram-se também o doce de leite, o pé de moleque e a goiabada. A televisão pifou, e findaram os frangos, leitões e lingüiças. Mangas, laranjas, bananas e hortaliças logo escassearam. A paulistada comia a mais não poder, e a meninada sempre com os bolsos estufados de biscoitos. Acabados os frangos e galinhas, a parentada passou a olhar de esguelha o galo. Galo índio, raçudo, cria do Dr. Ernestinho Rocha, campeão e senhor do terreiro, e que agora se arrastava, manco de tanto levar corrida da criançada. Gerôncio defendeu-o com unhas e dentes. Este ninguém comeria.
Os parentes foram-se após o Ano Novo, levando ainda as sobras. Descansados e gordos com tanta fartura e maravilhados com a vida no campo. Leite puro. frango caipira, verduras e frutas sem defensivos e agrotóxi008. Deixaram para trás a devastação, um tsunami. A horta arrasada, o pomar sem frutos e com galhos quebrados. Leitões, galinhas e frangos e ovos consumidos e quebra na produção de leite. Os capados soltos e galopeados pelos trombadinhas. O rego dágua, seu orgulho, arrebentado em diversos lugares. Cercas estouradas, porteiras bambas, pois eram usadas como cangorra, e o gado misturado. Os cavalos com pisaduras e cascos fendidos de tanto galope. No terreiro o velho galo ciscava chamando pelos pintinhos órfãos. Gerôncio desconfiado passou a duvidar da macheza de seu herói campeão. De brigas, de batalhas sangrentas, e famoso nas rinhas da região, agora trôpego e humilhado, de crista caída e barbela murcha, fazia serviço de macho fêmea. Coçando a cabeça Gerôncio falou: "Como dizia o finado Pratinha: parente é bom no retrato e pregado na parede".
E, Gerôncio, o negócio é começar tudo de novo e, no próximo ano, a recepção será lá na ponte do Rio Grande. À bala.
**da Revista ABCZ
CENTRO DE REFERÊNCIA DA PECUÁRIA BRASILEIRA - ZEBU
©2015-2025 - Associação Brasileira dos Criadores de Zebu - Todos os direitos reservados