Causo e Conto - A VONTADE DE DEUS - Por Hugo Prata
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- A VONTADE DE DEUS Por Hugo Prata** As fazendas mineiras do século XX tinham uma característica em comum: ninguém pagava empregadas domésticas. Em todas elas havia um bando de órfãos, enjeitados ou debilóides que trabalhava à custa de comida e vestimenta. Meu avô sempre dizia à minha avó: "escuta aqui, ó criatura, escolha sempre gente pititinha. Eles come menos e gasta muito pouca ropa". O fato é que ao redor da cozinha havia um monte de gente de touca na cabeça, vestidões de algodão, pés descalços, sempre a descascar mandiocas, inhames e batatas doces. A catar gravetos, debulhar milho para galinhas, catar ovos, pegar frangos e tratar dos capados. Os mais espertos aprendiam a fazer queijos e doces, tirar leite e cozinhar. Lembro-me bem do Simão Preto e da Catarina. Apanhados ainda bebês, foram criados dentro de casa e gozavam alguns privilégios. Simão aprendeu a ler e Catarina anunciava-se como uma boa cozinheira. Cresceram. Logo, Simão mostrava o esboço de um bigodinho e a Catarina generosos seios, pernas grossas e bunda saliente. Criados juntos, como irmãos, não demonstravam interesse um pelo outro, talvez com medo do vô. Catarina começou a arear bem os dentes, passar rouge e batom e fez, com suco de castanha de caju, uma pinta na bochecha. Passou a usar vestidos apertados e a requebrar as ancas volumosas. Dizia-se que ela namorava um nissei, filho do Tamoru, que arrendava uma baixada pra plantar hortaliças. O velho coronel estava de olho, mas nunca pegou o casal com a boca na botija. Como bom mineiro, que não dava bom-dia a cavalo, um dia chamou a patroa e deitou ordens: "Mariíta, tõ de olho na tal da Catarina. Tá se enfeitando muito, jogando muito as cadeiras, tenho medo que ela pegue um amojo. Antes que aconteça qualquer coisa pra atrapalhar nosso time, acho melhor casa a Catarina com o Simão. Vô manda arruma aquela casinha na ponta da colônia e os dois vão morar lá. Nada de amigação, quero casamento com padre e aqueles babados todos. Quero os dois ao redor de nossa casa e debaixo das minhas vistas". Assim falado e assim cumprido. Os dois se casaram. Veio o padre Menezes, houve festa, churrasco, leitoa assada e demais costumes daquele povo. Todo mundo foi à festança. Até o japonês. Um domingo à tarde. Catarina acabou de arrumar a cozinha do jantar e, debruçada na janela, conversava com Simão. Simão picava o fumo goiano para o palheiro. -"Simão. Deus é bom demais e Todo Poderoso. Magine só, nóis dois num tinha nada. E hoje temos casa, ordenado e comida à vontade. E agora tô esperando nosso fio. Por isso é qui é bom tá do lado de Deus e de todos os santos", - "Hum, hum..." - Faiz quatro meiz qui num chove, Simão. A secura tá geral, e num tem nuve no céu. Simão, si Deus quizé, mesmo sem nuve, qui chove agora, chove? - Si Deus quizé, chove, é Ele qui manda". - Simão, si Deus quizé, nesse areião seco aí, si nóis prantá fejão, num chuvè, o fejão brota, cresce e produz? - Si o bom Deus quizé, cum chuva ou sem chuva, o fejão produz." - Simão, nóis dois somo pretim, pretim, fios de gente também de cor. Si Deus quizé qui nosso fio nasce mais craro e cum os oinhos puxados quinem japoneis, ele nasce?" Silêncio. Simão acendeu o pito, bateu a cinza com a ponta do mindinho, e resmungou com voz grossa, de dar medo. - Si Deus quizé qui nosso fio nasce com parecença de japoneis, si Deus quizé ele nasce, mais ocê vai caí no reio, vai leva uma tunda de tê que dormi na sarmoura. Vai apanha pra criar juízo. **da Revista ABCZ
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